domingo, 27 de setembro de 2015

Conteudo 2º ano Cap 14



DIREITOS E CIDADANIA

Direitos de todos, das mulheres, dos negros, das crianças, dos adolescentes, do consumidor, dos idosos... Há várias leis e decretos que os traduzem. Mas de que adianta haver tantas leis e decretos que não são respeitados? Os direitos básicos dos cidadãos devem ser garantidos pelo Estado. Vamos ver como a relação entre direitos e cidadania foi tratada na história das sociedades.
Alguns povos da Antiguidade - como os babilônios, com o Código de Hamurabi, no século XVIII a.C., e os gregos de Atenas, com as leis de Clís­tenes, do século VI a.C. - tiveram suas normas e leis registradas por escrito. As leis babilônicas reforçavam o poder do Estado e as atenienses definiam as instituições da democracia. Nenhuma delas tratava dos direitos humanos, cuja história é bem mais recente.
Foi somente a partir do século XIII, na Inglaterra, que se criaram as primeiras cartas e estatutos que asseguravam alguns desses direitos: a Magna Carta (1215-1225), por exemplo, que protegia apenas os homens livres, e a Petition of Rights (1628), que requeria o reconhecimento de direitos e liberda­des para os súditos do rei. A mais importante das "cartas de direitos", porém, foi a Bill of Rights (1689), que submetia a monarquia à soberania popular, transformando-a numa monarquia constitucional. Cabe destacar ainda o Act of Settlement (1707), que completa­va o conjunto de limitações ao po­der monárquico, e o Habeas Corpus Amendment Act (1769), que anulava as prisões arbitrárias. Todos esses atos eram dirigidos apenas às pes­soas nascidas na Inglaterra. Eram leis para um só país.
No século XVIII, quando as colônias inglesas da América do Norte se tornaram independentes, foram criados alguns documentos importantes, como a Declaração de Direitos da Virgínia (1776) e a Constituição de 1787. Nesse mes­mo ano, foram ratificadas as dez primeiras emendas à Constituição estadunidense, que determinavam com clareza os limites do Estado e definiam os campos em que a liberdade devia ser estendida aos cidadãos. Embora as emendas garantissem liberdade de culto, de palavra, de imprensa e de reuniões pacíficas, ainda promoviam a distinção entre os seres humanos, já que não aboliram a escravidão.
Direitos para todos
Com a Revolução Francesa (1789), os direitos baseados nos princípios da liberdade e da igualdade foram declarados universais, ou seja, válidos para todos os habitantes do planeta. Entretanto, esses direitos, expressos na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão aprovada pela Assembléia Nacional francesa, não se estendiam às mulheres. Embora não seja muito citado nos livros de História, é sempre bom lembrar o caso de Olympe de Gouges (1748­1793), ativista e dramaturga francesa que, em 1791, propôs uma declaração dos direitos da mulher e acabou na guilhotina.
Os documentos originados da Revolução Francesa e da independência dos Estados Unidos são a base da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1948. Fortemente influenciada pelo horror e pela violência da primeira metade do século, sobretudo pelas atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mun­dial, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estendeu a liberdade e a igualdade de direitos, até nos campos econômico, social e cultural, a todos os seres humanos.
De acordo com essa concepção universalista, os direitos humanos estão acima de qualquer poder existente, seja do Es­tado, seja dos governantes. Em caso de violação, os responsáveis devem ser punidos.

Todos nascem livres e iguais... mas nem tanto
Com diferentes interpretações, muitos pensadores defenderam a idéia de que os seres humanos nascem livres e iguais, e têm garantidos determinados direitos inalienáveis.
De acordo com o pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679), os seres humanos são naturalmente iguais e, por terem excessiva liberdade, lutam uns contra os outros na defesa de interesses individuais, havendo a necessidade de um acordo (que ele chamava de contrato) entre as pessoas, a fim de que não se matem. Para evitar a autodestruição, todos os membros da sociedade deveriam renunciar à liberdade e dar ao Estado o direito de agir em seu nome e coibir todos os excessos.
Segundo John Locke (1632-1704), também inglês, somente os homens livres e iguais podem fazer um pacto com o objetivo de estabelecer uma sociedade política. Homens livres e iguais são aqueles que têm alguma propriedade a zelar. A propriedade, nessa perspectiva, torna-se o elemento fundamental da sociedade capitalista, ou seja, está acima de todos os demais, já que é o paradigma que define, inclusive, a liberdade dos indivíduos. Aqui já aparece a idéia de que nem todos são iguais desde o nascimento.
Para o pensador francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), a igualdade só tem sentido se for baseada na liberdade, mas, segundo sua definição, a igualdade só pode ser jurídica. A lei deve ser o parâmetro da igualdade: "todos devem ser iguais perante a lei".
Ora, no final do século XVIII e mais claramente no século XIX, a so­ciedade européia estruturava-se desigualmente e as diferenças entre as classes já eram evidentes. Ao propor a igualdade de todos perante a lei, criava-se um direito igual para desiguais. Em outras palavras, as pessoas não eram iguais porque nasciam iguais e livres, mas porque tinham direitos iguais perante a lei, feita por quem dominava a sociedade.
A igualdade total apregoada por muitos era realmente a mais grave ameaça aos privilégios sociais da burguesia e da aristocracia, que se mantinham no po­der. Discutia-se se a liberdade e a igualdade poderiam conviver ou se eram uma antítese insuperável, sendo necessário escolher entre elas. Como a sociedade capitalista funciona e se desenvolve movida pela desigualdade, a liberdade foi apregoada como o maior valor, deixando-se a igualdade de lado.
Para Karl Marx, o trabalhador, como membro de uma classe, não se iden­tificaria como cidadão, que seria somente a representação burguesa do indi­víduo. A idéia de democracia passaria pelo critério da igualdade social, que só uma revolução social poderia tornar realidade. Mas, recentemente, alguns marxistas afirmaram que a democracia burguesa poderia abrir caminho para uma igualdade formal e espaços de liberdade, além de ser um meio para que o trabalhador, ao lutar por seus direitos e liberdades democráticos, pudesse construir uma sociedade socialista.
Para Émile Durkheim, a idéia de cidadania está vinculada à questão da coesão social estabelecida com base na solidariedade orgânica, que é gerada pela divisão do trabalho e se expressa no direito civil. Assim, quando o indivíduo desempenha diferentes funções sociais, está integrado numa sociedade que se apresenta como um organismo estruturado. Seu papel como cidadão é o de cum­prir suas obrigações e desenvolver uma prática social que vise à maior integração possível., Ao participar da solidariedade social, levando em conta as leis e a moral vigentes em uma sociedade, o indivíduo desenvolve plenamente sua cidadania.
Direitos civis, políticos e sociais
Na década de 1960, em seu livro Cidadania, classe social e status, o sociólogo inglês T. H. Marshall analisou a relação entre cidadania e direitos no contexto da história. De acordo com esse autor, a questão da cidadania só começou a aparecer nos séculos XVII e XVIII, e ainda assim de forma sutil, por meio da formulação dos chamados direitos civis. Naquele momento, procurava-se garantir a liberdade religiosa e de pensamento, o direito de ir e vir, o direito à propriedade, a liberdade contratual, principalmente a de escolher o trabalho e, finalmente, a justiça, que devia salvaguardar todos os direitos anteriores.
Esses direitos passaram a ser o ideal das épocas seguintes e constaram em todas as legislações européias a partir de então. Isso não significa que os direitos civis chegaram a rodas as pessoas. O cidadão no pleno gozo de seus direitos era o indivíduo proprietário de bens e principalmente de terras, o que mostra como a cidadania era restrita.
Os direitos políticos estão relacionados com a formação do Estado democráti­co representativo e envolvem os direitos eleitorais - a possibilidade de o cidadão eleger seus representantes e ser eleito para cargos políticos, o direito de partici­par de associações políticas, como os partidos e os sindicatos, e o direito de protestar. Considerados desdobramentos dos direitos civis, os direitos políticos começaram a ser reivindicados por movimentos populares já no século XVIII, mas, na maioria dos países, só se efetivaram no século XX, quando o direito de voto foi estendido às mulheres.
No século XX também chegou a vez de os direitos sociais serem postos em prática. As pessoas passaram a ter direito à educação básica, assistência à saúde, programas habitacionais, transporte coletivo, sistema previdenciário, programas de lazer, acesso ao sistema judiciário, etc.
Os direitos civis, políticos e sociais estão assentados no princípio da igualdade, mas .1ão podem ser considerados universais, pois são vistos de modo diferente em cada Estado e em cada época. Convém lembrar que há uma diversidade muito grande de sociedades, que se estruturam de modo diferente e nas quais os valores, os costumes e as regras sociais são distintos daqueles que predominam no Ocidente.
No final do século XX e no início do século XXI, outros direitos relacio­nados a segmentos e situações sociais específicos - por exemplo, consumido­res, idosos, adolescentes, crianças, mulheres, minorias étnicas, homossexuais - consolidaram-se.
Como ressalta o filósofo Renato Janine Ribeiro, recentemente surgiram direitos difusos, e os mais expressivos são os relativos ao meio ambiente, que beneficiam a todos. Há uma ironia nisso porque a garantia ao ar, à água e ao solo mais limpos protege até os próprios poluidores. Hoje se afirmam também os direitos dos animais ou da natureza em geral. De acordo com a tradição jurídica ocidental moderna, os direitos pertencem aos seres humanos. Assim, a preservação das matas e dos animais em via de extinção garante o direito dos humanos a um ambiente biodiversificado.

Cidadania hoje
Ser cidadão é ter a garantia de todos os direitos civis, políticos e sociais que asseguram a possibilidade de uma vida plena. Esses direitos não foram conferidos, mas exigidos, integrados e assumidos pelas leis, pelas autoridades e pela população em geral. A cidadania também não é dada, mas construída em um processo de organização, participação e intervenção social de indivíduos ou de grupos sociais. Só na constante vigilância dos atos cotidianos o cidadão pode apropriar-se desses direitos, fazendo-os valer de fato. Se não houver essa exigência, eles ficarão no papel.
As duas cidadanias Como vimos, o conceito de cidadania foi gerado nas lutas que estruturaram os direitos universais do cidadão. Desde o século XVIII, muitas ações e movimentos foram necessários para que se ampliassem o con­ceito e a prática de cidadania. Nesse sentido, pode-se afirmar que defender a cidadania é lugar pelos direitos ê. portanto, pelo exercício da democracia, que é a constante criação de: novos direitos.
T H. Marshall propôs uma análise da evolução da cidadania vinculada a determinados direitos, com base na situação da Inglaterra. Na sociedade contemporânea, porém, há um grau de complexidade e de desigualdade tão grande que q divisão dos direitos do cidadão em civis, políticos e sociais já não é suficiente para explicar sua dinâmica. Como alternativa a essa classificação, po­demos pensar em dois tipos de cidadania: o formal e o real (ou substantivo).
A cidadania formal é aquela que está nas leis, principalmente na cons­tituição de cada país. É a que estabelece que todos são iguais perante a lei e garante ao indivíduo a possibilidade de lutar judicialmente por seus direitos. Tal garantia é muito importante: se não houvesse leis para determinar nossos direitos, estaríamos nas mãos de uma minoria. Essa era a situação dos escravos, que não tinham direito algum.
A cidadania substantiva ou real, aquela que vivemos no dia-a-dia, mostra que não há uma igualdade fundamental entre todos os seres humanos - entre homens e mulheres, crianças, jovens e idosos, negros, pardos ou brancos.
Vamos tomar como exemplos o direito à vida e o direito de ir e vir. O direito à vida é o principal. Sem ele, os demais nada valem. Mas milhares de pessoas, principalmente crianças, morrem de fome todos os dias em vários locais do planeta. Essas pessoas não conseguiram ter o direito à vida, o direito real e substantivo à cidadania.
O segundo direito básico em nossa sociedade, o de ir e vir, é reconhecido desde o século XVII. No dia-a-dia, entretanto, nem sempre as pessoas podem se deslocar para qualquer lugar e ficar onde quiserem. As praias, por exemplo, são todas públicas, mas algumas foram fechadas por pessoas que se consideram proprietárias e não permitem a entrada de ninguém. Há também ruas, vias públicas, que são fechadas e vigiadas por seguranças, os quais impedem a livre circulação dos cidadãos. Nos shopping centers, os guardas garantem a segurança dos freqüentadores, mas também evitam o acesso de pessoas que aparentem não ter poder de consumo. Nesses casos, o direito de ir e vir não é respeitado.
Se esses direitos básicos ainda não são efetivos para a maioria das pessoas, imagine o que acontece com os demais! Ao analisar os direitos humanos nos dias de hoje, no mundo globalizado, observa-se, por exemplo. que o direito à diferença não é levado em conta. principalmente quando se trará de culturas muito distintas das ocidentais. O sociólogo português Boaventura Souza Santos formula um questionamento importante: como ficam os direitos dos indiví­duos que sofreram os efeitos das numerosas guerras que ocorreram depois de 1945, nas quais se envolveram as nações que foram o berço dos documentos de direitos universais – Inglaterra, França e Estados Unidos?
A defesa dos direitos humanos convive com sua violação. A coerência entre os princípios e a prática dos direitos humanos só será estabelecida se houver uma luta constante pela sua vigência, travada por meio de ações políticas ou movimentos sociais. Direitos só se tornam efetivos e substantivos quando são exigidos e vividos cotidianamente.

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